domingo, 7 de outubro de 2012

Gabriela, sobre certos casamentos: “Me livrei de sapato de salto, vestido de seda, de tanta obrigação. Queria ser só eu... Gabriela. [...] Olha, moça. Eu era passarinho, presa na gaiola. E tu abriu as porta. Agora posso voar”.

GABRIELA SE LIBERTA EM CAPÍTULO IMPECÁVEL

Aliviada, Gabriela chora na cama que não é dela

O capítulo de Gabrielaontem foi o melhor até agora. Claro, não peguei a novela desde o começo. Demorei porque é obrigação demais seguir um programa desses, ainda mais pra alguém que passa meses sem ligar a TV. Comecei a ver a novela justamente porque, de um lado, tinha gente falando das vantagens de mostrar a vida (absolutamente miserável) das mulheres nos anos 20, em Ilhéus, e, por outro, gente pedindo minha opinião sobre a “apelação” de exibir cenas de sexo e nudez (só feminina) em praticamente todo capítulo. 
Confesso que a novela me cativou imediatamente. Os atores estão ótimos, a trilha sonora deve estar entre as melhores da história da televisão brasileira (só tem música fantástica; minha única queixa é que são tocadas alto demais e às vezes encobrem os diálogos), e a história é toda feminista. Claro, gente imbecilpode aproveitar apenas o “Esta noite eu vou lhe usar” e fazer de um personagem desprezível e amargurado como o Coronel Jesuíno um ídolo, mas Gabriela não deixa margem de manobra para o fato que as mulheres da época (e não só elas) não tinham como ser felizes. Então toda aquela lenga-lenga de “Putz, o feminismo ferrou a mulherada, que antes adorava cuidar da casa e ser comandada pelo pai e depois pelo marido” vai por água abaixo. 
Vemos Sinhazinha, uma esposa fiel, religiosa, prendada, enfim, modelo de “mulher honrada”, que nunca teve orgasmo até encontrar um amante. Quando encontra, tem alguns momentos de felicidade e prazer (e também é estuprada pelo marido nesse meio tempo), até ser assassinada pelo esposo, que quer lavar sua honra. Só pessoas muito ruins das ideias podem ser fãs do Coronel Jesuíno.
Vemos também uma personagem abertamente feminista, Malvina, que com coragem enfrenta várias convenções. E vemos o crescimento de Jerusa, que deixa de ser uma menininha assustada. A cena em que Gabriela passa a dançar na rua, e Jerusa é a segunda a atirar seus sapatos de salto alto pros céus (mostrado em câmera lenta, como se fosse um instante épico -- e é) e juntar-se a ela, já diz muito sobre sua mudança.
E chegamos a Gabriela, o papel-título. Quando comecei a ver a novela, a cozinheira só me incomodava. Certo, adorava seu espírito livre, seu sorriso aberto, seu talento na cozinha (tenho grande admiração por todo mundo que consegue criar coisas com as mãos, de costura a casas), sua vontade de transar sem pudor. Mas ela era simpática demais. Estava sempre disposta a agradar seja lá quem fosse. Não sei quem fez essa imagem, mas concordo com ela.
Eu pensava, e devo ter gritado com a TV: pô, Gabriela, imponha-se! Seja mais incisiva com um cafajeste como Tonico (adorável, tenho que admitir. Como suas cenas são sempre cômicas, e como Marcelo Serrado brilha no papel, eu até simpatizo um pouco com ele. E com sua mulher, Olga, finamente interpretada por Fabiana Karla. Apesar dos chistes gordofóbicos, eles se merecem). E por que fazer tudo que Nacib quer? Fiquei indignada quando Gabriela aceita casar-se com ele, mesmo não querendo, mesmo sabendo que o casamento naquele contexto é uma prisão pra mulher. E ela casa só porque ele fica tristinho com a recusa, e ela não quer ver o "moço bonito" chateado!
A partir de realizado o sagrado matrimônio, suas vidas mudam completamente. Nacib fica obcecado em dar tudo do bom e do melhor pra Gabriela, tentando transformar o bicho do mato numa dama da sociedade. Gabriela odeia tudo que Nacib lhe dá -– os sapatos de salto alto, que ela nunca aprende a domar (somos duas!), os vestidos de seda, um passarinho engaiolado e seu simbolismo óbvio. Mas ela não quer ferir os sentimentos do esposo e se esforça em obedecer. É incrível como Nacib (Humberto Martins) fica até feio! Ele não era fisicamente desagradável antes com aquele bigodão, mas quando passa a se comportar como “quem manda aqui sou eu e não tem discussão”, vira um ogro. E um sem noção, que não percebe que está matando tudo que lhe atraía em Gabriela. Rapidamente a moça abandona o sorriso, erra a mão na comida, esquece o tesão. Tudo se transforma num martírio, e a atuação de Juliana Paes nessa transformação é admirável.
E eis que chegamos ao capítulo de ontem, que foi simplesmente esplêndido. Nacib pega Gabriela na cama com Tonico (cena aqui). De arma em punho, decide não atirar. Tonico foge de cueca pela cidade, depois apanha da esposa e do pai (e o tom é leve e a gente gosta). Gabriela e Nacib ficam arrasados. Ela vai morar na casa da vizinha. Ele recebe a visita da irmã, que leva todos os vestidos finos da ex. Quando pergunta se pode levar o perfume, Nacib responde de forma poética: “Gabriela tinha cheiro de cravo, de canela, de cozinha. Precisava não de perfume".
Gabriela errou sim. Errou ao se casar com Nacib, mesmo sabendo que isso a faria perder o que mais preza, sua liberdade. Errou não por trair Nacib -– a meu ver, alguém que age como ele agiu está quase pedindo pra ser traído -–, mas por traí-lo com um mau caráter que fingiu ser sensível para seduzi-la. Os errros de Nacib foram muito mais graves que o adultério de Gabriela. Aquilo de dar-lhe um par de sapatos de presente de natal foi a gota d'água. Ele já havia notado que Gabriela prefere mil vezes um cachorrinho. Ou uma estrela.
Zarolha, a quenga que armou o esquema para que Nacib desse o flagra, vai até onde Gabriela está para se vangloriar de ter-lhe tirado o “turquinho”. Ela conta, orgulhosa, sobre toda a armação, com quase todos os objetivos cumpridos, só faltando agora fisgar Nacib. Gabriela ouve tudo calada, e finalmente se levanta e vai até Zarolha (veja a cena). 
Nós conhecemos o clichê e somos condicionadas pra isso desde crianças. O clichê diz que mulheres que disputam o mesmo homem devem se odiar. Portanto, eu não sabia o que Gabriela ia fazer ao ficar cara a cara com Zarolha, mas não ficaria espantada se ela lhe desse um tapa. Afinal, Gabriela foi humilhada, enganada, e quase morta por causa dessa armação. Mas não. 
Calma, mas sofrida, ela agradece Zarolha por tê-la libertado do casamento. “Me livrei de sapato de salto, vestido de seda, de tanta obrigação. Queria ser só eu... Gabriela. [...] Olha, moça. Eu era passarinho, presa na gaiola. E tu abriu as porta. Agora posso voar”. Essa reação deixa Zarolha (Leona Cavalli em seu melhor momento) atordoada. Com os olhos marejados, e com uma tentativa de sorriso, ela só pode responder: “Tu pensa de uma maneira...diferente”. Gabriela ainda pede para que Zarolha cuide de Nacib. Em vez da esperada rivalidade, cria-se uma cumplicidade entre as duas. Uma não tem raiva da outra. 
A delicadeza de toda essa cena me deixou vibrando. Ela passa uma mensagem incrivelmente feminista de que mulheres, numa sociedade patriarcal como a nossa, não têm motivo para brigar entre si. E de que não podemos nos deixar aprisionar dentro de um relacionamento. E isso não tem nada a ver com trair. Tem a ver com ter que mudar até virar aquilo que você detesta, ter que obedecer sem questionar, ter que se encaixar num padrão. Ser “moça direita”, nessa situação, tá mais pra uma sentença de morte. Duvida? Pergunte a Dona Sinhazinha.
No http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2012/10/gabriela-se-liberta-em-capitulo.html

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